Os seus planos falharam? Aproveite a oportunidade e improvise
Apresentação do Círculo de Vozes, o grupo onde tenho treinado o músculo da improvisação. Foi no lançamento do meu livro Desafio da Aranha, em 2023 no teatro lisboeta A Barraca.
Este é o terceiro artigo em que reflito sobre formas de enfrentar tempos difíceis – os atuais ou os próximos. No primeiro, fiz o elogio do medo. No segundo, falei da importância de ter um plano, mesmo sabendo como é raro que os planos se cumpram. Neste, trago mais um ingrediente, essencial para quando o seu plano não resiste ao contacto com a realidade: a capacidade de improvisar.
Improvisar é mais uma daquelas capacidades humanas de que gostamos de dizer mal. Uma solução improvisada normalmente quer dizer uma solução ruim: algo feito sem planeamento ou cuidado. No dia a dia temos de improvisar muitas vezes: quando não deu para pensar no jantar, quando algo quebra e não temos as ferramentas, ou seja, face a um imprevisto. Mas é sempre uma solução de recurso; um mal menor.
A cultura ocidental gosta de racionalidade, de controlo e de planos. O pressuposto é que, com isso, podemos dominar as nossas circunstâncias. Tanto quanto possível, eliminamos da fotografia os imprevistos, os motivos de força maior, os cisnes negros da vida, mas também muitos dos comportamentos, emoções e inspirações humanas.
Na escola e nas empresas preparamo-nos para situações ideais: aquelas em que temos todo o tempo, todas as ferramentas, toda a informação, dá para planear e tudo corre conforme os planos. Claro que a vida real é bem diferente. Por isso, quando temos de a encarar, e toda aquela preparação já não funciona, ficamos à mercê do talento que Deus nos deu. Quem nasceu com o dom de improvisar, improvisa. Se não é o seu caso, azar – azar não apenas seu, mas de quem quer que dependa do seu trabalho.
Mas há atividades em que não é assim. Para um músico de jazz, uma atriz, um jogador de futebol, improvisar não é apenas um recurso para quando algo corre mal. É uma capacidade treinada e usada muito intencionalmente. Sabendo que o público não vai gostar menos da performance por saber que é um improviso – pelo contrário.
A admiração é ainda maior quando o improviso é em grupo. A reação habitual então é: como conseguem? Que magia fazem para funcionar todos em harmonia, mesmo quando tudo o que vemos está a ser inventado no momento?
Nos últimos tempos tenho experimentado um pouco dessa magia ao participar num grupo de improvisação vocal: o Círculo de Vozes, dirigido pela incrível musicista Aixa Figini. É uma experiência que me dá imenso prazer, mas na qual também tenho aprendido muito. E comecei a pensar que algumas dessas descobertas podiam ser úteis também num outro tipo de grupos, que são as empresas.
Aprendi por exemplo que:
1. Improvisar não é fazer o que nos dá na gana
Numa improvisação em grupo, o objetivo não é que cada um invente o que quer, mas que o conjunto produza algo coeso e interessante. Por isso, a improvisação está longe de ser totalmente livre: segue regras predefinidas. No nosso caso, há uma regente, que comunica com o grupo através de sinais combinados entre todos. Estes sinais e a forma como os seguimos são treinados ao longo de meses. Sem essa preparação, a improvisação facilmente degenera em cacofonia.
Improvisar, noutras palavras, não é de todo incompatível com planeamento.
Numa empresa ou equipa de trabalho acontece a mesma coisa. Normas, processos e rituais claros e seguidos por todos dão liberdade para criar, inovar e improvisar com segurança.
2. Improvisar treina-se
E o que se treina na improvisação são muitas e diferentes capacidades. Há a capacidade de ouvir e a atenção ao conjunto. Há a autoconfiança e a disponibilidade para correr riscos. Mas há também competências técnicas que vão dando a cada participante cada vez mais recursos com que brincar.
No nosso grupo, treinamos a improvisação com o canto, com percussão corporal, com textos falados, até com línguas imaginárias.
Praticamos truques para simplificar. Do género: se o nosso vizinho propôs uma melodia interessante, por que não a reforçar em vez de propor algo novo? Mas também praticamos o contrário, para não cair sempre nas soluções mais óbvias. Em vez de fazer um ritmo paralelo ao de uma colega, por exemplo, podemos cantar só nos momentos em que ela faz pausa. É mais difícil, mas mais interessante.
Com este repertório de possibilidades, o grupo vai ficando mais cúmplice, mais coeso e mais criativo. O resultado também é cada vez mais divertido.
3. Improvisar é abraçar o acaso
O acaso é muito mais importante na nossa vida do que gostamos de admitir. Por exemplo: se os seus pais não se tivessem encontrado, por acaso, naquela festa, hoje não estaríamos aqui a conversar. Contrariar o acaso é impossível: em última análise, é sempre ele a decidir tudo. Sendo assim, já que o temos de aceitar, por que não aprendermos a brincar com ele? Numa improvisação, é o que fazemos.
E é uma competência que dá muito jeito num contexto empresarial. Por mais que pensemos que as empresas se regem por planos, também nelas o acaso dá cartas. As oportunidades e obstáculos que aparecem, o que faz a concorrência, o contexto externo – nada disso controlamos, e tudo pode mudar num instante, se a sorte assim o decidir. Saber improvisar é crítico para responder à altura.
4. Improvisar implica ouvir
Quando improviso no meu grupo vocal a minha liberdade é enorme – posso inventar uma melodia, um ritmo, brincar com palavras, com a forma de colocar a voz… Mas há uma condição: tudo o que fizer tem de encaixar de alguma forma com o que já está a ser feito pelos meus companheiros. Quando o regente me pede uma nova ideia musical, ela pode reforçar, complementar ou fornecer um contraste ao que os outros já estão a fazer. Só não os pode ignorar.
Da mesma forma, em qualquer organização, coordenar-me com os outros, perceber o que o grupo está a tentar fazer e ajustar a isso a minha contribuição é indispensável. Não quer dizer que seja fácil. O meu ego, a vontade de me destacar (ou, ao contrário, a minha timidez) vai interpor-se de vez em quando. Ou posso estar tão preocupado com o que vou fazer que esqueço de me informar sobre o que acontece na sala ou no departamento ao lado.
5. Em vez de discutir, acrescentar
Quando um colega propõe uma ideia musical, o meu papel não é julgá-la: pensar se gosto dela, se me inspira, se preferia que fosse outra. Para que a improvisação flua, o caminho é aceitar o que vem e acrescentar a minha contribuição. Numa formulação frequente tanto na improvisação teatral como nos exercícios de criatividade, o princípio é nunca responder com um “não” ou com um “sim, mas”, mas sempre com um “sim, e também”.
Transposto para qualquer trabalho em equipa, usar o “sim, e também” é provavelmente das competências mais valiosas que se pode aprender – mas também das mais difíceis. Desde a primária somos treinados para rebater, corrigir, questionar. Obviamente é importante saber fazê-lo. Mas, quando o objetivo é gerar novas ideias, gastar tempo e energia a demolir as alheias costuma ser contraproducente.
6. Improvisar implica… improvisar
Numa improvisação em grupo, cada participante não tem muita margem para, no momento, preparar o que vai fazer. Quando o regente me faz o sinal, tenho de ouvir o que soa à volta e propor algo – algo que eu próprio, segundos antes, não sei o que será.
Das primeiras vezes o mais comum é não sair nada. Bloqueamos. Depois, pouco a pouco, o medo desaparece. O pior que pode acontecer, afinal, é errar: propor uma melodia que não encaixa, por exemplo – e às vezes erramos mesmo. Mas, e daí? O erro, como veremos adiante, faz parte.
Seria ótimo que esta capacidade de fazer algo rápido não fosse necessária no trabalho de todos os dias. Só que os melhores planos, como já referi, não resistem ao campo de batalha. Imprevistos, urgências, mudanças repentinas estão sempre a acontecer, e é preciso agir rápido. Noutras palavras, improvisar.
7. Improvisar é não ter medo de errar
Toda a preparação que cerca a improvisação em grupo – os sinais da regente, as técnicas e convenções que treinamos, as muitas horas de ensaio – aumenta a probabilidade de um resultado interessante. Mas não há garantias. Para se entregar com confiança à própria espontaneidade, cada participante tem de aceitar que às vezes não vai correr bem – e tudo bem.
Não vai haver julgamentos. A música vai continuar. E, muitas vezes, o próprio “erro” pode dar origem a algo novo e interessante.
Sem a permissão para errar, também não há permissão para fazer coisas significativas. Qualquer que seja o contexto, estas duas permissões andam sempre juntas.
8. O resultado nunca é perfeito
Não fiz a conta, mas desconfio que uma das palavras que mais usei neste texto, até aqui, foi o verbo “aceitar”. Aceitar o peso do acaso. Aceitar as contribuições dos outros. Aceitar o erro. Tudo isto é essencial à improvisação. E a consequência, que também implica aceitar, é que o resultado nunca será perfeito.
Pode ser muitas outras coisas: lindo, inspirador, entusiasmante, provocador. No grupo de que faço parte, costuma ser tudo isso. Mas, perfeito, nunca é. Tem erros – muitas vezes nasce deles. Tem coisas que, se pudessem ser planeadas, faríamos de outra forma. Mas o desafio está justamente aí: não podem ser planeadas. Saem como saírem. E ainda bem.
O ótimo, dizem, é inimigo do bom – e nas situações, profissionais ou outras, em que improvisar é preciso, a máxima é ainda mais verdadeira. Ao contrário dos nossos planos, em que tudo está arrumadinho no seu sítio, o mundo real exige outra velocidade. Aí, mais vale feito do que perfeito. E isto dá uma grande vantagem a quem aprendeu a improvisar.
Após um ano a exercitar o músculo da improvisação, estas foram algumas das lições que aprendi. Lições que cada dia descubro serem valiosas também no contexto o profissional. Permitem-me lidar melhor com tudo o que escapa ao planeamento e ao controlo – incluindo não só as circunstâncias inesperadas, mas também os meus próprios processos criativos, nem sempre previsíveis e lineares, e os da minha equipa.
E na sua empresa, já andam a ensaiar, de alguma forma, a capacidade de tocar de improviso?