O marketing tramou o Pai Natal?
Há quem diga que sim: que o Natal nunca mais será o que era, e o marketing e a publicidade é que têm toda a culpa.
Parece uma acusação muito grave – por isso, não podíamos passar mais um Natal sem a tirar a limpo.
Será que foi mesmo o marketing que deu cabo do tal espírito que o Pai Natal deveria representar? Leia, tire as suas próprias conclusões e, com ou sem visitantes a descer pela chaminé, tenha um ótimo Natal!
Todos os dezembros é a mesma cantiga: “O Natal não é mais o mesmo”. “O espírito de Natal já não existe”. “O comércio matou o Natal”.
É compreensível. Bombardeada por jingle bells e pais natais em cada supermercado, pelo apelo implacável ao nosso consumismo, não há mística que se aguente. Para muita gente, é bem possível que a alegria de festejar, de repartir, já tenha sido substituída por um mecânico intercâmbio de compras: eu dou-lhe uma t-shirt, você dá-me um livro, estamos quites. Consumimos brinquedos, eletrodomésticos, calorias e já está: para o ano há mais.
Até para as crianças acreditar é cada vez mais difícil. Como conciliar mistério e surpresa com uma lógica comercial que exige que vão elas próprias escolher na loja os brinquedos que viram na TV?
A tradição, como diz o uísque, já não é o que era. Mas a pergunta é: alguma vez foi?
Todos nós temos uma ideia idílica dos “velhos tempos” ‒ aqueles em que nada mudava e tudo estava mais próximo da sua verdadeira essência. Neste caso, esse tempo coincide com a nossa infância ‒ aí, sim, o Natal era o Natal. O que raramente notamos é que, já então, os nossos pais viam as festas de final de ano como uma degenerescência. Para eles, o Natal dos seus filhos já nada tinha a ver com o verdadeiro ‒ o da infância deles, é claro.
E a verdade é que não tinha mesmo. Objetivamente, o Natal mudou muito nas últimas décadas. De geração para geração mudaram costumes, símbolos e muito do famoso “espírito”. O marketing obviamente teve a ver com isso. Mas, por muito que o acusem, a sua maior contribuição não foi destruir rituais e mitos. Muito pelo contrário.
Pense, por exemplo, naquele velhote gorducho, de barrete vermelho, a deslizar no seu trenó. O que seria do Natal sem ele, não é?
Pois, se não fosse o marketing, nem você, os seus pais e os seus filhos jamais teriam ouvido falar dele.
A origem do Pai Natal é conhecida: do lendário São Nicolau foi pouco a pouco derivando por todo o lado a figura do velhinho distribuidor de prendas. Mas, tal como o conhecemos, ele só ganhou forma no início do século 19, quando o poema “An account of a visit from Saint Nicholas” popularizou na América a representação do elfo bonacheirão, a precisar de dieta e com um fraquinho por chaminés. Se hoje o mundo inteiro o conhece assim, é porque ele logo se revelou para o comércio um verdadeiro presente de Natal.
Já há mais de 200 anos o hábito de dar prendas na época das festas de fim de ano tinha despertado o sentido de oportunidade dos comerciantes americanos. Em 1820, as lojas já faziam promoções especiais, e em 1840 havia secções nos jornais só para os anúncios ligados à quadra. O Pai Natal era a estrela de muitos desses anúncios ‒ o que o tornou ainda mais popular. Em 1841, milhares de crianças acorriam a uma loja de Filadélfia para ver um Pai Natal “vivo”. A moda dos Pais Natais de shopping, que nos parece tão recente, teve início há exatos 183 anos.
Visualmente, o Pai Natal ganhou a figura que lhe conhecemos em 1881, graças ao marketing da revista Harper’s Weekly. A ilustração de Thomas Nast para a capa fez tanto sucesso que voltou a ser publicada por vários anos seguidos. Foi aí que o Pai Natal ganhou o seu fato vermelho, a oficina no Pólo Norte e os anõezinhos.
O empurrão que faltava veio da publicidade da Coca-Cola, que a partir de 1931 globalizou um fenómeno até então principalmente americano.
Em todo o planeta, o velhinho tornou-se sinónimo de Natal ‒ e acreditar nele, o sinal característico da infância.
Como se vê, o marketing ajudou a dar ao mundo um belo ritual, uma mitologia cheia de significado. Um significado tão importante que até protestamos ao sentir que ele se está a perder. E o Natal não é caso único. O que seria das grandes celebrações desportivas sem as marcas que as apoiam e que se apoiam nelas? O que seria de rituais como o Dia da Mãe ou o do São Valentim, que de forma menos espetacular mas não menos importante ajudam a estruturar as nossas relações familiares e sociais?
O que certamente custa a aceitar, nessa forma de ver a interferência do marketing nas nossas tradições, é que nela se misturam espiritualidade e comércio, inocência e astúcia, espírito de Natal e espírito de iniciativa. Coisas que talvez gostássemos de imaginar hermeticamente separadas. Mas que, como a história do Pai Natal demonstra, se misturam todos os dias. Mesmo no Natal, ora vejam, não há pureza neste mundo.
E isso será bom ou mau? Para já, é a realidade ‒ não há muito a fazer. Mas talvez possamos dizer que é mau quando a esperteza dos negócios nos leva a ver as tradições como um simples meio, um pretexto a mais para fazer barulho e chamar a atenção. Sempre que nós, publicitários e marqueteiros, fizermos assim a campanha, a promoção e o cartão de Natal da nossa marca, por exemplo, o tal espírito estará a morrer pelas nossas mãos. E, provavelmente, também estaremos a fazer mau marketing.
Felizmente, também se dá o contrário. Como o Pai Natal da Harper’s Weekly ou da Coca-Cola, pode ser que a nossa campanha capture como ninguém o que a festa tem de humano e verdadeiro. Quando isso acontece, não é o marketing que toma conta da festa ‒ mas o inverso: com a ajuda de uma ideia feliz, voltamos a perceber, como quando éramos crianças, o que significa um feliz Natal.
O marketing tramou o Pai Natal? Agora já tem os factos. Aguardamos o seu veredito.