Provavelmente já terá reparado. Cada vez que alguém se exprime sobre a Inteligência Artificial, especialmente desde que o Chat GPT fez disparar a excitação sobre o tema, a emoção que aparece é uma mistura. Por um lado, assombro: o que a máquina consegue fazer é realmente incrível. Por outro, medo: que mundo vai ser esse, que estas novas tecnologias prometem mudar tanto, e tão depressa?
Alguns destes temores são completamente racionais e fáceis de concretizar. Há profissões (a minha, por exemplo, enquanto redator e criativo publicitário) nas quais o impacto deste tipo de ferramentas não é hipotético nem futuro. Já está a acontecer, embora não lhe tenhamos visto ainda todas as consequências. E quem não souber, de alguma forma, reinventar-se, vai ficar sem trabalho.
Assustador, sem dúvida – embora não seja nada novo. Olhar para uma tecnologia nascente como uma arma de destruição maciça de empregos é recorrente pelo menos desde a revolução industrial, quando artesãos americanos e ingleses atacavam as máquinas que ameaçavam o seu modo de vida.
Mas há uma parte desse medo que é mais visceral e obscura. E que, mais ou menos na mesma época em que os luditas destruíam teares mecânicos, fez do Frankenstein de Mary Shelley um mito que nos fascina até hoje. Mais do que roubar empregos, o medo que esse mito simboliza é que as máquinas nos roubem a nossa própria humanidade. A tecnologia transforma-se em monstro: um ser híbrido, indefinível, incontrolável e aterrador.
É esse mesmo temor que hoje associamos à Inteligência Artificial. Há mesmo quem se dedique a elaborar sobre ele, com argumentos discutíveis, mas convincentes. É o caso de Yuval Noah Harari, com a sua distopia, descrita em Homo Deus, dominada por sistemas que nem os seus próprios criadores sabem bem como funcionam.
Para mim, nada até agora capturou tão bem esta mescla de sentimentos como o filme AlphaGo. Se ainda não o viu, vá ver: está disponível, grátis, no Youtube. É um documentário brilhante sobre a máquina que, em 2016, pela primeira vez na história, derrotou o campeão mundial de Go: aquele jogo de tabuleiro chinês tão complexo, com tantas combinações potenciais, que até então parecia impossível de ganhar sem a intuição humana.
O filme poderia ser uma história sobre tecnologia, mas não é bem. É antes um drama em que se defrontam, de um lado, uma visão otimista sobre o que a tecnologia pode conseguir, e do outro o profundo terror que ela nos inspira.
À medida que LeeSedol, o jogador sul-coreano considerado o melhor do mundo, descobre que mesmo a sua genialidade não lhe garante a vitória contra o algoritmo, não é só ele que se sente humilhado, despossuído daquilo que, até então, o definia. A emoção que o torneio provocou, principalmente na Coreia, mas não só, mostra que o que estava em jogo era muito mais do que a performance de uma máquina. E é esse mesmo sentimento que experimentamos, ao ver o filme: o de que as nossas fronteiras, enquanto seres humanos, estão a ser violadas. Temos de recuar, ou avançar, mas não sabemos para onde.
Um dos aspetos mais desconcertantes do documentário, e que penso que continuará a ser um assunto em relação à inteligência artificial, são as reações da própria equipa da Deep Mind, que criou o Alpha Go. Enquanto a maior parte da plateia se identifica com Lee Sedol, os autores do algoritmo torcem pela sua criatura, mas muitas vezes não entendem o que ela está a fazer. E isto reforça, em quem vê as vitórias da máquina como uma derrota da humanidade, a sensação de fazer frente a um adversário particularmente ameaçador e monstruoso. Tal como o Frankenstein, ou como uma nova espécie de divindade, os caminhos do algoritmo são insondáveis.
A contradição que atravessa todo o filme materializa-se no contraponto entre a história que acompanhamos – e que nos faz sofrer com o heroico ser humano que, apesar de vencer um dos cinco jogos, tem de se render à superioridade da máquina – e os comentários finais, em que o próprio Lee Sedol se junta ao coro dos que celebram a proeza tecnológica e os benefícios que daí virão para a humanidade.
Racionalmente, faz todo o sentido. Mas não é esse o mood que fica (pelo menos no meu caso) quando acabamos de ver o documentário. O medo, a perplexidade e o assombro que acompanharam a batalha entre Lee Sedol e o AlphaGo são parecidos com as reações que agora provocam o Chat GPT e similares. É uma mistura de sentimentos que ainda veremos surgir muitas vezes, creio eu, à medida que novas ferramentas baseadas na Inteligência Artificial forem tomando conta de cada vez mais campos da nossa vida.
Fonte: Dinheiro Vivo