Mas será mesmo que as marcas podem salvar o mundo?

6 de janeiro de 2021
Por Jayme Kopke

Um dos livros mais interessantes que li em 2020 foi Can’t Sell, Won’t Sell, de Steve Harrison.

O autor é um dos criativos publicitários mais premiados do Reino Unido, e isto apesar de ter feito a sua carreira no marketing direto – uma área tradicionalmente pouco associada ao brilho criativo. O marketing direto sempre teve, em compensação, um foco maior nos resultados imediatos do que a publicidade “generalista”, muitas vezes acusada de trabalhar a imagem das marcas sem se preocupar com o seu efeito mensurável nas vendas.

O facto de vir desse mundo e ao mesmo tempo ter colecionado os prémios mais importantes da publicidade mundial deu a Steve Harrison uma qualidade rara. Poucos publicitários serão defensores tão ferrenhos da sua dupla missão: construir marcas fortes, através de comunicação memorável, mas ao mesmo tempo gerar vendas no curto prazo.

É dessa aguda sensibilidade para os resultados que vem a irritação de Harrison com um dos rumos da publicidade nos últimos anos, e que é o tema do livro: a obsessão das marcas com o chamado “propósito”. Segundo essa tendência, a uma marca não bastaria melhorar a vida de consumidores e clientes com o produto que vende – cabe-lhe também melhorar o mundo, associando-se a uma qualquer causa social ou ambiental em voga.

Harrison não concorda. Melhorar o mundo pode até fazer sentido para algumas marcas. Para a maioria, é uma distração em relação ao seu verdadeiro, ainda que mais humilde, propósito: vender.

Para ele, essa obsessão – que também conhecemos em Portugal – é sintoma de uma perda de sintonia das agências e equipas de marketing com a população em geral. O livro, fartamente documentado, mostra como o consumidor comum está bem mais focado nos benefícios concretos do que compra do que com o tal propósito – com o qual, de resto, muitas vezes nem sequer se identifica. Se os gestores das marcas não se dão conta disso, é porque demograficamente não espelham a população como um todo. Segundo o livro, nós, produtores de comunicação, normalmente vindos dos estratos mais favorecidos da sociedade, vivemos numa bolha, longe dos públicos que queremos conquistar.

Nessa bolha privilegiada grassaria uma tendência paradoxal. Publicitários e marqueteiros, que por inerência estão na linha da frente do capitalismo, frequentemente não gostam dele – ou, pelo menos, gostam de denegri-lo, mesmo quando não se importam de gozar dos seus benefícios.

Um parêntese: se isto é assim no mundo anglo-saxónico, foco de Can’t Sell, Won’t Sell, desconfio que o será ainda mais na nossa cultura, marcada por séculos de antipatia católica contra a venda e o lucro. Falo pela minha experiência. Como tantos publicitários, entrei nesta profissão não por uma vontade especial de vender, mas porque a via como uma saída para aptidões criativas de outra forma mais difíceis de remunerar. Ter de vender era um mal necessário – os ossos do ofício.

Fonte: Dinheiro Vivo

Só pouco a pouco me fui libertando dos meus preconceitos, até abraçar a venda como parte do que mais valorizo no que faço. Mas não é algo evidente. A associação entre lucro e roubo, marketing e mentira, está profundamente enraizada da nossa visão do mundo. E, nas últimas décadas, tem tido um terreno propício para saltar cá para fora.

Num contexto de globalização e aceleração tecnológica que gerou grandes ruturas, os defeitos do capitalismo – como a tremenda ameaça ambiental ou a explosão da desigualdade – tornam fácil condená-lo como um todo, esquecendo os benefícios de que nenhum de nós abriria mão. A tentação, insuflada por um dos lados do nosso polarizado ambiente político, é deitar fora o bebé com a água do banho.

Steve Harrison não parece ignorar que o capitalismo tem um problema de imagem. Mas vê a forma como muitas marcas lidam com a questão como um tiro no pé. É uma estratégia que pode ser vista como cínica ou ingénua. Adotando causas com que não têm nada a ver e onde não têm contribuição relevante, as marcas usurpam dores alheias em proveito próprio. Ao fazê-lo, banalizam e retiram legitimidade a essas lutas, mas principalmente a si próprias: os consumidores, que não são parvos, topam a esperteza.

Mas talvez ainda mais grave, segundo o livro, é que, ao assumirem a má consciência de uma parte da sociedade, as marcas desistam de vender. O que, principalmente num quadro de pandemia e recessão “sem precedentes”, equivale a contribuir para uma catástrofe.

Can’t Sell, Won’t Sell não disfarça a sua intenção polémica. O seu propósito declarado é abanar publicitários e responsáveis de marketing, britânicos em primeiro lugar, nas suas confortáveis certezas. A julgar pela discussão que já tem gerado, essa parte da aposta está ganha. E acho que Portugal também ganhará em que este debate chegue às nossas paragens.

Outros Artigos

partilhe
Facebook
linkedin
Whatsapp
email
fechar
close
Newsletter B2B da Hamlet - A sua fonte de conhecimento e atualização contínua sobre marketing e comunicação business-to-business
Em conformidade com o Regulamento Geral da Proteção de Dados da União Europeia, informamos que ao clicar "Subscrever":
1) Aceita receber as nossas comunicações por email.
2) Autoriza que as informações que forneceu sejam transferidas para o nosso parceiro de marketing Mailchimp para processamento.
Saiba mais sobre as práticas de privacidade do Mailchimp.
close

Newsletter B2B da Hamlet

Precisa vender ou comunicar com empresas ou públicos profissionais? Bem-vindo à Newsletter B2B da Hamlet. A sua fonte de conhecimento e atualização contínua sobre marketing e comunicação business-to-business.
Em conformidade com o Regulamento Geral da Proteção de Dados da União Europeia, informamos que ao clicar "Subscrever":
1) Aceita receber as nossas comunicações por email.
2) Autoriza que as informações que forneceu sejam transferidas para o nosso parceiro de marketing Mailchimp para processamento.
Saiba mais sobre as práticas de privacidade do Mailchimp.