Os Anéis e os Dedos

6 de outubro de 2020
Por Jayme Kopke

Acabara de aprender a conduzir, era a minha primeira saída e estava a correr tudo bem – até ao momento de entrar em casa. Ao lado da garagem dos meus pais havia outra, e por um segundo hesitei: por aqui ou por ali? Na dúvida, fui em frente – e espetei-me entre os dois portões. 

Lembrei-me há dias desta desventura enquanto ajudava um cliente a resolver uma dificuldade frequente nas empresas: escolher uma mensagem simples e única para comunicar. A tentação era ficar, como eu, condutor de primeira viagem, não entre duas, mas entre muitas opções. Ser tudo para todos. Os mais baratos, mas também os mais seguros e velozes. Apregoar produtos, mas também serviços. Vender às PME mas também às grandes. 

Estou a falar de empresas, especialmente das B2B que são com quem mais trabalho, mas poderia generalizar. Governos, organizações, indivíduos, todos temos dificuldade com o foco. Porque será? 

Por aqui ou por ali?

Não deve ser por não sabermos que é importante: quantos livros, artigos, vídeos já não lhe vieram lembrar que focar-se é o segredo para tudo o que quiser na vida? Não se distraia. Faça uma coisa de cada vez. Na carreira, abrace uma especialidade e vá fundo. Imite a Apple: não produza tudo, mas só o que faz melhor do que qualquer concorrente. Não tenha trinta mensagens. Faça como a Nike: ache algo único para dizer e just do it.

Era para ser fácil, não? Por definição, manter-se simples não devia ser complicado. Só que é. “Se é tão fácil complicar, para quê simplificar?” Esta frase, ouvida tantas vezes na minha terra – sempre, pelo menos, que o bom humor do brasileiro tropeça na burocracia local – resume o enigma do foco. 

Fazer simples é difícil porque escolher uma coisa implica sacrificar o resto. E os seres humanos não gostam de sacrifícios. Dizem, aliás, que não são só os humanos – vide a história do asno de Buridan. Alguém pôs junto do pobre animal, a igual distância, água e palha. Não conseguindo optar entre a fome e a sede, o bicho crashou – e acabou por morrer das duas.

O asno de Buridan é uma personagem conceitual: um burro de carne e osso começaria por um lado qualquer. Sacrificaria por um momento o apetite em prol da sede, ou vice-versa. Estabeleceria, ainda que arbitrariamente, uma hierarquia.

“Sacrificar” e “hierarquia” são palavras que usamos todos os dias, sempre que se trata de definir um foco. Hierarquizamos objetivos. Sacrificamos o supérfluo ao essencial. Curiosamente, são termos aparentados. “Hieros”, em grego, é o sagrado; “hierarquia”, o poder do sagrado. “Sacri-ficar”: pagar um tributo ao que é sagrado para nós. 

Escolher um foco é definir algo como sagrado – e no que é sagrado não se toca. Seja um objetivo, uma estratégia, um valor, não importa quanto foi preciso discutir e negociar para chegar até ele: do momento em que o declaramos sagrado, torna-se inegociável. A essa opção sacrificamos todo o resto – e assim canalizamos para um só ponto toda a força com que poderíamos desejar outras coisas. 

Definir e manter um foco é difícil porque para chegar ao inegociável frequentemente é preciso negociar muito. Entre perder peso e aquela fatia de bolo – ou, numa estratégia de comunicação, entre as inúmeras mensagens possíveis – nem sempre há acordo sobre o que são os anéis e o que são os dedos. Aliás, mesmo depois do tratado de paz não é garantido que o conflito termine. Perder os dedos dói. Mas ficar sem os anéis também custa um bocadinho.

Tampouco é por acaso que “foco” significa, na origem, fogo. Concentrando a energia de todos os desejos que lhe sacrificamos, o sagrado é intocável porque, como a sarça no deserto, de alguma forma queima. É por isso que quem encontra o seu foco já não se importa de perder os anéis: sabe que tem o poder na ponta dos seus dedos.

Dito isto, quando há muitos caminhos, visões, quereres em conflito, como escolher? Eu também gostava de ter a receita, mas as duas únicas certezas que tenho são sobre o que não fazer. A primeira: não faça como o asno da fábula. Entre dois desejos igualmente ardentes, escolha um e avance. A outra: não faça como eu na primeira aventura ao volante. Na dúvida, pare e pense mais um pouco. Se ainda for preciso negociar, rever o tema com os seus botões ou com a sua equipa, invista esse tempo. Só então, vá em frente – com toda a energia de quem sabe onde vai.

Fonte: Dinheiro Vivo

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